Exposição Gestos

Meu processo na pintura está integrado a muitas faces da construção de uma pesquisa artística. Onde chego hoje nas telas que apresento para esta proposta, em suas distintas composições, tons e discussão, é resultado (não findado) de um longo caminho que começa no encontro com o outro dentro da linguagem do Graffiti.

Na rua, comecei a idealizar uma experiência desenvolvendo o que chamo de uma poética da “publicidade afetiva”. Pintando pessoas que conheço, mulheres e homens negros, percebi que o retrato em formato de mural, para além de uma função da emoção impactante pelo seu porte em grande escala, despertava outras posições de sensibilidade: a marcação e registro da presença e representatividade destes corpos nos espaços propostos, e o reflexo em um impacto direto na autoestima das pessoas negras, da minha própria auto estima.

O trabalho começou a se desenvolver então entorno da intenção de criar retratos junto a uma nova construção histórica e cultural dos negros, com a finalidade de naturalizar a amorosidade e dignidade dos corpos e suas relações, através de uma percepção visual intimista. Ao querer inspirar essas atitudes, usei como tática tornar visível nosso cuidado, a normalização de um gesto afetuoso, imagens que possam inspirar e educar olhares para acessar tais locais de respeito à vida. Confrontando o conforto , a comodidade em visualizar a violência contra as pessoas racializadas, provocando assim, um encontro com bem estar, vida, afeto que ao contrário da violência é não acolhido da mesma forma na sociabilidade.

As cores que utilizo em meus trabalhos partem de um estudo que foi provocado também a partir da vivência com o Graffiti. Muitas vezes não era possível ter/escolher as cores que idealiza, então acabei adaptando as cores vibrantes dos sprays para uma pesquisa de fundamentada em sombras coloridas de luz e suas complementares. A partir daí, fui aprimorando e criando esquemas de cores mais harmônicos, em busca de uma paleta quente, pensando na incidência das cores sobre a pele negra e principalmente o destaque a vivacidade.

Da mesma forma, dentro do Graffiti, surge a minha relação com o espaço de composição. Em um primeiro momento eu penso no espaço de convivência e democracia e num segundo eu torno este mesmo espaço parte do tema e laboratório da minha experiência artística. Ao mesmo tempo em que eu utilizo a cidade para pensar as relações, a instituição surge com um aparato de possibilidade de difusão de um discurso através da sobrevivência e circulação do objeto artístico.

Dessa forma,“Gestos” (2020), surge como uma exposição virtual e para as ruas de Florianópolis, SC, que também fizeram parte de uma pesquisa desenvolvida para meu Trabalho de Conclusão de Curso de bacharelado na UDESC.

A proposta foi inserir a cidade dentro da exposição, falar da convivência social na cidade e dentro dela. Toda a comunicação e mediação se deu a partir da assessoria de imprensa e on-line. A abertura e circulação virtual se deu no Instagram, do dia 10 ao 21, na conta @exposicaogestos.
Durante os dias 10 e 13 as telas foram expostas fisicamente em muros de casas escolhidas pela cidade, no desejo de que o público pudesse realizar um percurso afetivo durante este processo de pandemia, com a devida proteção.

Gestos, de Gugie Cavalcanti

TEXTO ESCRITO PELA HISTORIADORA DE ARTE FRANCINE GOUDEL

No gesto potente e genuíno de duas mãos que se tocam e se unem, por entre os dedos que se entrelaçam, uma pequena porta é desenhada semiaberta apresentando um recinto luminoso. Pequena na representação, imensa na metáfora visual que ambienta, a porta sugere nossa sensível admissão dentro do toque terno de duas mãos negras. Punhos, palmas, unhas. Entrelaçadas em tons púrpura, magenta e castanho, as mãos aclimatam a via de possibilidades de apreciação: no interior deste gesto afetuoso encontraremos o análogo, o diverso, mas, sobretudo, encontraremos a nós mesmos, como um ponto inflexível da condição humana. O processo de entrada nos trabalhos de Monique Cavalcanti (Gugie) é mesmo assim.

Por entre repertórios de uma narrativa visual que anseia uma sensibilidade e naturalidade através do corpo negro. Em projeções em muros e telas, a artista visual e grafiteira coloca em evidência memórias e expressões de sua vivência em personagens de um ideal factível de estima. Um trabalho que tem como disparador construtivo a fotografia, mas que logo ganha ampla dimensão, novas paletas de cores e paisagens urbanas, na vontade de ocupação dos espaços, no desejo de acessibilidade de sua proposta. A exposição GESTOS não poderia ser diferente.

Através da portinhola luminosa do afeto entramos na mostra e por ela dentraremos aos ambientes pictóricos de Gugie pele a pele, em toque, olhar, sensibilidade e identificação. A palavra gesto é entendida como uma forma de expressão do corpo, de movimentos e visagens, no entanto é também sinônimo de procedimento. Gestos como uma atitude na prática, configura esta como a melhor expressão para junção da “estétic(ação)”de Gugie. 

Uma série de trabalhos desenvolvidos em um momento mundial que demanda do corpo maior veemência. Oito telas apresentadas de maneira virtual no mês de setembro de 2020, que também podem ser vistas por um percurso afetivo criado pela artista em sua cidade. Gugie em um processo curatorial, imaginando Florianópolis como uma grande sala expositiva, retorna aos seus locais de convivência e andanças, pleiteando as paredes externas das casas em tratativas com os moradores galeristas, por um local de visibilidade que é de qualquer um. 

O resultado da exposição GESTOS é o ensejo da potência dos corpos negros refletida em uma poética de vida: proximidade, amabilidade, dignidade, possibilidade.

Francine Goudel, historiadora de arte.

Obras

Pele
Acrílica sobre tela.
78×96 cm

O encontro de ombros e cotovelos é um gesto singelo e frequente para quem caminha lado a

lado. Mesmo sem pretensões, o toque carrega intimidade e ele é o gesto mais presente no
convívio da população brasileira.

Um diálogo de corpos que quase diz “isso é parte de mim também”.

Pensamentos
Acrílica sobre tela.
0,37X0,30

“Qual o olhar mais íntimo e próximo que se pode ter de alguém?

Estar realmente perto nos permite, às vezes, pensar o que o outro está imaginando ou refletindo, mesmo num momento de descanso.

Aqui, não se sabe para onde os meninos estão indo ou voltando e isso é projeção do que pode ser o mundo por trás do olhar.

O corpo é o cenário e a paisagem desse imaginário. Um espaço geográfico como lar para outro universo.

O beijo, 2020.
Acrilica e spray sobre tela.
90×90 cm

O momento de intimidade e afinidade que é o beijo de um casal às vezes gera desconforto pra quem olha.

Essa obra, ao mesmo tempo que nos impede de ver os rostos, nos permite observar e analisar um gesto que é pura troca de afeto.

Ver um beijo também é um disparo de possibilidades no nosso imaginário.

Autocuidado, 2020.
Acrilica e spray sobre tela.
120×130 cm

Apoiar a si mesmo é autocuidado.

Esse gesto implica diálogo, segurança e fortaleza. Apoio é sobre isso.

E o mundo grita a necessidade de apoiarmos aos outros e a nós mesmos.

O sorriso do canto, 2020.
Acrilica e spray sobre tela.
Da serie da exposição Gestos.
130×160 cm

Tão singelo e bonito, esse gesto é simples e quase que involuntário.

Um bem-estar tão espontâneo que é como se fosse um “suor da felicidade”.

Os pequenos gestos do rosto, na sua maior simplicidade e verdade, declaram o sentimento que passa pela mente, pelo corpo e pelas sensações.

Relacionamento, 2020.
Acrilica e spray sobre tela.
Da serie da Exposição Gestos
125x90cm

Entrelaçar mãos, um gesto poderoso, é capaz de consolidar um novo mundo. Relacionamento
é a construção deste mundo, que pode ser tão único e singular quanto as próprias pessoas que
o constroem. É o surgimento de uma terceira coisa a partir de duas, um universo entreaberto
que é fruto do tato.

Cangote, 2020.
Acrilica e spray sobre tela.
Da serie da exposição Gestos.
140×123 cm

A proximidade, a pele com pele… Esse gesto é, no fundo, um carinho mútuo.

Cuidar de alguém que depende tanto de nós é uma relação.

Novo Normal, 2020.
Acrilica e spray sobre tela.
Da serie da exposição Gestos.
100×75 cm

Num espaço-tempo em que a comunicação visual se dá principalmente pelo recorte dos olhos, essa é a imagem que anseio.

Que a presença de um olhar sorridente, feliz e forte de uma mulher negra seja cada vez mais frequente

Trechos do release feito por Yasmine de Holanda:

Artista espalha obras pelas ruas de Florianópolis e promove reflexão sobre interações sociais e questões raciais

A proposta era instigar o público a refletir sobre interações pessoais, questões raciais, convivência com aquele que é diferente de nós. As obras também convidavam o espectador a ter um olhar afetuoso para o próximo, por meio de gestos que dizem mais que palavras.

Como Gugie tem uma trajetória importante no grafite, já era possível contemplar suas artes pela cidade. Mas desta vez foi diferente: as telas foram pregadas em muros e ganharam placas de identificação, assim como nas exposições realizadas em museus e galerias, em uma ação que aproxima os dois mundos da artista visual. A exposição ao ar livre durou quatro dias e segue online pelo Instagram do projeto até o dia 21 de setembro.

“Foi um movimento na cidade. Mesmo com toda a divulgação, muitas pessoas se depararam com minha obra sem querer. Fiquei feliz de levar meu trabalho para a rua, um espaço totalmente acessível, para que elas pudesse ter essa experiência. Só de ter tocado e atingido as pessoas próximas dos lugares onde coloquei cada obra já valeu a pena. A exposição foge da bolha, apesar de também atrair pessoas que já estão acostumadas a visitar espaços culturais e museus”, celebra a artista.

As obras foram recolhidas e agora passarão por uma pequena restauração e serão colocadas nos bastidores para então serem comercializadas pelo Instagram do projeto. Todas estavam em perfeito estado após quatro dias de exposição ao ar livre, o que também gera uma reflexão sobre os valores das obras e a relação do público com elas.

“Apenas uma placa de identificação sumiu. Foi um teste para mim. E se pegassem uma obra? Quem pegaria uma obra de arte? Possivelmente seria alguém que tem noção do valor dos trabalhos, que levaria para sua própria casa. Acho que tive coragem em cima dessas reflexões”.

Nas redes sociais foram divulgados os endereços onde cada obra estava exposta e muitos aproveitaram para fazer o percurso sugerido completo ou parte dele. A vernissage, evento que costuma anteceder a estreia de uma exposição, deu lugar a uma ação criativa na qual as primeiras 12 pessoas que postassem imagens de alguma obra no Stories ganhariam um kit com cervejas da Cervejaria Unika para poder celebrar em casa.

“Fiquei admirada pela forma como as pessoas acolheram a proposta. Legal também foi a maneira como eu me apresentei para aquelas que ainda não me conheciam e puderam me conhecer a partir desse trabalho, que carrega muita amorosidade, significado e questões importantes sobre a nossa sociabilidade”, comenta Gugie.

Artista aborda questões raciais pelo viés da gentileza e afeto

Em Gestos, Gugie retratou personagens negros e convidou o espectador a naturalizar a presença com felicidade e a dignidade das pessoas negras na cidade, já que propôs uma reflexão sobre a nossa sociabilidade.

“Eu não tenho como mensurar, mas acredito que muitas pessoas que passaram pela experiência vivenciaram um olhar amoroso sobre corpos e gestos entre pessoas negras. Puderam dialogar com essas imagens íntimas de afeto. Penso que devemos falar sobre humanização dos nossos olhares como um gerador de pensamentos gentis, com igualdade, dignidade e respeito. É a minha forma de lutar nesse momento tão delicado. É nítida a naturalização da violência de gênero e raça, e o pior, a naturalização do nosso sofrimento. Então em contraponto a gente tem que mostrar que somos seres humanos atingidos pelas construções históricas sociais e naturalizar a nossa dignidade. Também gostamos do cangote dos nossos filhos. Sentimos as peles que nos tocam caminhando lado a lado. Também temos afetos. A exposição espalhou gestos que precisam ser normalizados e considerados para repensarmos nossa convivência social”, finaliza a artista.